O Genocídio dos Espanhóis na América

 

 

 

 

 

 

         Bartolomé de Las Casas, dominicano, teólogo, historiador, humanista militante, ficou conhecido em todo o mundo principalmente por ter sido o primeiro religioso ordenado nas Américas e como autor da Brevíssima Relação da Destruição das Índias.

            Espanhol de Sevilha intitulava-se “defensor universal dos índios” e teve a coragem de enfrentar a Igreja Católica Apostólica Romana para dizer que os índios eram seres humanos, com almas, e para dar um testemunho apavorado e apavorante das atrocidades dos colonizadores espanhóis contra os nativos caribenhos e da América Central.

            Seu livro é uma análise crítica, precisa, detalhada, eloqüente, de todas as justificativas que a colonização dita cristã usou para encobrir as máscaras hipócritas da crueldade e da cobiça. Porque, segundo ele, a exploração colonial não destruiu apenas os nativos, “nas as almas daqueles que praticaram e praticam o genocídio, com a bênção de religiosos e sob a cruz de Cristo e a invocação de Isabel, a Católica”.

            Nem ele mesmo escapou da sua crítica. Dono de uma propriedade agrícola na ilha de Hispaniola (São Domingos), libertou todos os seus índios escravizados, mas substituiu-os por negros africanos capturados na Guiné. Mais tarde reconheceu que os negros também eram seres humanos e que tinham alma, arrependendo-se, mas a culpa perseguiu-o por toda a vida.

 

            Las Casas conta a história desde o primeiro desembarque de Colombo. Tinha os arquivos e as memórias do Descobridor e uma impressionante documentação, em primeira mão.

            Ao contrário da maior parte de seus opositores, que tiravam conclusões apressadas, baseadas em abstrações, ele viveu muito tempo nas Índias Ocidentais. E, em cada etapa, acumulou provas do desastre. Não se cansou de mandar relatos, petições, súplicas, de denunciar os crimes da escravidão e da destruição das estruturas nativas tradicionais. Não foi ouvido.

            Bradou que a única justificativa cristã para a descoberta do Novo Mundo era a emancipação e conversão pacífica das populações que a habitavam, mas que nem os sacerdotes cumpriam essa missão.

            Apesar da sua fé inabalável nas graças da Divina Providência, viu populações indígenas desaparecerem sob seus olhos nas ilhas do Caribe. E outras serem trazidas escravizadas do continente, da Venezuela e da Colômbia, para também serem maltratadas e mortas.

            Pregou no deserto, com desespero contra as guerras promovidas pelos capitães espanhóis: “Por onde elas se travam ou travarão, contra infiéis como os habitantes dessas Índias, essas guerras foram, são e serão injustas, iníquas e tirânicas, e são condenadas por toda lei natural, humana e divina; qualquer guerra que partir dos indígenas contra qualquer espanhol ou cristão, que antes lhe tenha feito o mesmo, é absolutamente justa. E queira Deus que eu morra segundo a mesmo justiça que recebem essas pessoas hoje, numa guerra cruel. Eles têm esse direito e sempre o terão, até o dia do Juízo Final”.

 

            Frei Bartolomé não tinha ilusão mesmo que bradasse por toda parte, sua verdade não era ouvida, nem mesmo por sua Igreja. Culpa dos tempos, tempos de cobiça.

            Assim que o velho dominicano terminou o terceiro livro da sua História, entregou o manuscrito ao Colégio São Gregório, proibindo sua divulgação por 40 anos para “não ser publicado antes da hora, pois isso não tem sentido e, portanto, não terá proveito algum.”

            Em 1571 seu manuscrito deixou de ser secreto e, devidamente expurgado e desviado de seu espírito, serviu como matéria prima para a grande história oficial da Conquista, de Antonio de Herrera.

            A íntegra, com a verdade, era tão perigosa que precisou esperar até 1875 e a ruína do colonialismo espanhol para ser publicado.


 

 

 

 

 

EXTRATOS

DA BREVÍSSIMA

RELAÇÃO

DA DESTRUIÇÃO

DAS ÍNDIAS.


 

 

 

            Em 1556 o uso das palavras conquista e conquistadores foi proibido, por decreto, na Espanha. Deviam ser substituídas por descobrimento e colonos. O

Historiador oficial da conquista, Gonzalo Fernández de Oviedo, autor da famosa História General y Natural de las Índias assim como Juan Gines Sepúlveda, historiador partidário da teoria da “servidão natural”, escolheram falsificar a história e esconder a matança e o horror provocado pelas ações dos espanhóis no Caribe e na América Central.

            A Igreja queria calar Bartolomé de Las Casas, dominicano que denunciava a sangrenta história da conquista da América espanhol. Não conseguiu.

            Se conseguiu alguns aliados e adeptos em sua campanha de mais de 50 anos a favor dos direitos dos índios, fez incontáveis inimigos e foi acusado até de ser anti-patriota. Os dois historiadores foram os mais destacados e com eles Las Casas manteve uma polêmica de tal tamanho que exigiu a interferência da Igreja Católica. A polêmica terminou nos tribunais de Valladolid, depois de três anos (de 1547 a 1550).

            Em uma ocasião Las Casas testemunhou durante cinco dias, sem parar,

listando todas as atrocidades dos espanhóis e, ao mesmo tempo, defendendo a tese libertária de que os nativos eram gente como a gente, irmãos em Cristo. O teólogo e tomista Francisco de Vitória, titular da cadeira de Direito da Universidade de Salamanca, coordenador dos debates e considerado uma das mentes mais extraordinárias de sua época, concluiu que Las Casas estava certo: não só os índios tinham alma e não podiam ser escravizados como eram os verdadeiros donos das terras descobertas pelos espanhóis.

            A decisão histórica, chegava tarde. Em 1556, mais de 90% da população indígena do Caribe já estava exterminada.

            Aqui está um extrato da Brevíssima Relação da Destruição das Índias, em que frei Bartolomé de Las Casa descreve a história sangrenta do grande genocídio americano. Ele escreveu “apenas o que viu”, ou o que lhe foi informado “por “fontes seguras, escritas ou orais”.

            O que mais o comoveu, em 1514, precipitando sua conversão, não foi tanto o fato dos índios morrerem sob a dominação espanhola, mas que morressem por culpa daqueles que deveriam ser os maiores interessados em sua conversão.

            A medida que o tempo passava, Las Casas foi ficando cada vez mais radical. Em 1517 o cardeal Jiménez de Cisneros decidiu enviar três jerônimos, formando uma Junta, à ilha Espanhola. Eles organizariam um tribunal, entrevistaria os nativos e deveria decidir se tinham condições de viver por si sós, como camponeses de Castela. E se seriam “nobres selvagens” ou “cães imundos”. Depois de dois anos de investigação o tribunal decidiu que não tinham merecimento ou condição para serem livres.  E a maioria morreu de varíola, meses mais tarde.

            A segunda derrota deu-se em 1520 quando seu projeto de colonização pacífica, em Cumaná, na Venezuela, com camponeses trazidos da Espanha, fracassou, por falta de verbas e problemas burocráticos.

            Um ano mais tarde ele começou a escrever a Brevíssima Relação, um dos livros mais polêmicos de todos os tempos.

            As chamadas índias Ocidentais foram descobertas em 1492 e povoadas pelos espanhóis no ano seguinte, a começar pela Ilha Espanhola. Como escreveu Las Casas, “até os tiranos confessam que jamais os índios causaram desprazer algum aos espanhóis, que os consideraram como descidos do céu até o momento em que eles, ou seus vizinhos, provaram os efeitos da tirania”.

 


 

 

 

CAPITULO I

DA ILHA ESPANHOLA

 

            Na Ilha Espanhola que foi a primeira (…) a que chegaram os espanhóis, começaram as grandes matanças e perdas de gente, tendo os espanhóis começado a tomar as mulheres e filhos dos índios para deles servir-se e usar mal e a comer seus víveres adquiridos por seus suores e trabalhos, não se contentando com o que os índios de bom grado lhes davam, cada qual segundo sua faculdade, a qual é sempre pequena porque estão acostumados a não ter de provisão mais do que necessitam e que obtêm com pouco trabalho.(…)

 

            E tudo chegou a tão grande temeridade e dissolução que um capitão espanhol teve a ousadia de violar pela força a mulher do maior rei e senhor de toda esta ilha. (…) São tão fracos e de tão poucos expedientes que suas guerras não são mais que brinquedos de crianças que jogassem com canas ou instrumentos frágeis.. (…) Faziam apostas sobre quem, de um só golpe de espada, fenderia e abriria um homem pela metade, ou quem, mais habilmente e mais destramente, de um só golpe lhe cortaria a cabeça, ou ainda sobre quem abriria melhor as entranhas de um homem de um só golpe. (…) Outros, a quem quiseram deixar vivos, cortaram-lhes as duas mãos. (…) Dessa maneira procediam comumente com os nobres e os senhores; faziam certos gradis sobre garfos com um pequeno fogo por baixo a fim de que, lentamente, dando gritos e em tormentos infinitos, rendessem o espírito ao Criador.

 

            (…) os espanhóis fizeram uma lei entre eles, segundo a qual por um espanhol morto faziam morrer cem índios.


 

 

 

CAPITULO II

DOS REINOS QUE HAVIA NA ILHA ESPANHOLA

 

            Havia nessa ilha Espanhola cinco grandes reinos principais e cinco reis muito poderosos. Aos quais obedeciam todos os outros senhores, que eram inumeráveis. (…)

 

            Um reino havia que se chamava de Magua, que é o mesmo que dizer Reino da Planície. (…) E todas as ribeiras que saem de uma montanha na direção do Ocidente e que são 25 mil, são muito ricas em ouro: nessa montanha está contida a província de Cibao, que é de onde vem esse ouro raro e fino de 24 qulilates que é tão famoso por aqui, O rei e senhor desse reino era chamado Guarionex e tinha sob o seu domínio vassalos e senhores tão poderosos que cada qual deles podia dar 16 mil homens de guerra. (…) Esse Guarionex era muito obediente e virtuoso, de seu natural pacífico e afeiçoado à devoção dos Reis de Castela, e por sua ordem sua gente dava (cada um dos que tinham casa) um sino cheio de ouro.

 

            (…) O pagamento que recebeu esse bom rei por tão boa-vontade foi que um capitão, mau cristão, o desonrou na pessoa de sua mulher, violando-a. Esse pobre príncipe teria bem tido forças para se vingar, mas preferiu retirar-se para a província dos Ciguayos (…) esperar o fim dos seus dias.

 

            Os espanhóis, havendo sabido o seu exílio e assegurando-se do lugar que estava, começaram uma guerra (…) matando e saqueando tudo (…) e esse infeliz príncipe foi encontrado, preso, acorrentado e aferrolhado num navio para ser conduzido a Castela; mas o navio pereceu no mar, assim como todos os que nele estavam.

 

            Outro reino era o que se chamava do Marien (…) e esse reino é maior que o de Portugal, muito mais fértil e digno de ser habitado, tendo grandes montanhas e minas de ouro e de cobre mui ricas. O rei se chamava Guacanagari. (…) Ao país desse rei chegou primeiramente o velho Almirante e foi por ele e foi por ele mui humanamente recebido com todos os espanhóis que estavam em sua companhia e ouvi dizer ao Almirante que não teria podido receber mais honras em seu país. Esse rei morreu fugindo à matanças e crueldades dos espanhóis e todos os seus senhores e súditos morreram na escravidão (…)

 

            O terceiro reino e senhorio era Maguana (…) mui fértil e salubre e onde se faz o melhor açúcar dessa ilha. O rei desse país se chamava Caonabo e sobrepujava todos os outros em força e em estado, em gravidade e em cerimônias de seu serviço. Os espanhóis se apoderaram desse rei com grande sutilidade e astúcia (…) depois o meteram em um navio para levar a Castela. Mas estando no porto os navios, prontos para fazer à vela, Deus, por seu justo julgamento, fez ver que essa injustiça não lhe agradava e enviou nessa noite uma tempestade que submergiu e abismou todos esses navios com os espanhóis que neles estavam.

 

            (…) Tinha três irmãos tão valorosos como ele e que, vendo a perda do rei seu irmão, se puseram em armas contra a Espanha, mas os espanhóis, (…) vieram-lhes ao encontro com certos cavalos (que são as armas mais perigosas que possam existir para os índios) e fizeram tal carnificina que a metade desse reino ficou por ela arruinada e despovoada.

 

            O quarto reino é o que se chama de Xaraguá. (…) O rei se chamava Behechio e tinha uma irmã chamada Anacaona (…) e prestaram grandes serviços ao rei de Castela e aos espanhóis, libertando-os de muitos perigos de morte. Após a morte de Behechio, Anacoana ficou como única soberana do reino, então, o governador dessa ilha, havendo entrado nesse reino com homens a pé e a cavalo, começou a destruir tudo; tendo chamado mais de 300 senhores dessa província, fez encerrar os maiores numa casa de palha e ao mesmo tempo fez incendiá-la de sorte que todos foram queimados vivos.. Todos os outros senhores e grande quantidade de povo foram mortos a golpes de lança e de espada. E a soberana Anacaona, para lhe prestar homenagem, enforcaram-na.

 

            O quinto reino era chamado Higuey, governado por uma rainha chamada Higuanama, a qual os espanhóis enforcaram e em seguida queimaram uma infinidade de pessoas e fizeram grande número de escravos. (…) eu direi (como quem o diz diante de Deus) de tantas iniqüidades e tiranias, que os índios nunca deram motivo aos espanhóis para tratá-los de tal maneira.


 

 

 

CAPÍTULO III

DAS DUAS ILHAS, DE SÃO JOÃO E DA JAMAICA.

 

            Os espanhóis passaram á ilha de São João (*) e à de Jamaica, que eram como jardins e colméias de abelhas, no ano de 1509, com o mesmo propósito e o mesmo fim que haviam tido na ilha Espanhola, perpetrando e cometendo banditismos e todos os pecados (…) acrescentando-lhes com excesso grandes e notáveis crueldades, matando, incendiando, torrando índios e lançando-os aos cães (…) até extirpar todos esses pobres inocentes que eram nessas duas ilhas até 600 mil almas e creio eu que até mais de um milhão e hoje creio que não há cem pessoas nessas duas ilhas, tendo morrido todos sem Fé e sem Sacramentos.

 

(*) Hoje Porto Rico


 

 

 

CAPÍTULO IV

DA ILHA DE CUBA

 

            No ano de 1511 passaram á ilha de Cuba (…) onde havia mui belas províncias. Nessa ilha os espanhóis praticaram grandes crueldades. (…) Um cacique, grão-senhor, chamada Harthuey se havia transportado da lha Espanhola (…) para fugir às calamidades e atos tão desumanos dos espanhóis.

(…) Esse senhor cacique fugia sempre aos espanhóis e se defendia contra eles toda vez que os encontrava. Por fim, foi preso com toda a sua gente e queimado vivo. E como estava atado ao tronco, um religioso de São Francisco lhe disse algumas cousas de Deus e da nossa Fé, que lhe pudessem ser úteis, no pequeno espaço de tempo que os carrascos lhe davam. Se ele quisesse crer no que lhe dizia, iria para o céu onde está a glória e o repouso eterno e se não acreditasse irria para o inferno, a fim de ser perpetuamente atormentado. Esse cacique, após ter pensado algum tempo, perguntou ao religioso se os espanhóis iam para o céu; o religioso respondeu-lhe que sim, desde que fossem bons. O cacique disse, incontinente, sem mais pensar, que não queria absolutamente ir para o céu; queria ir para o inferno e fim de não se encontrar no lugar em que tal gente se encontrasse.

 

            (…) Certa vez, os índios vinham ao nosso encontro para nos receber, à distância de dez léguas de uma grande vila, com víveres e viandas delicadas e toda espécie de outras demonstrações de carinho. E tendo chegado ao lugar, deram-nos grande quantidade de peixe, de pão e de outras viandas, assim como tudo quanto puderam dar. Mas eis incontinente que o Diabo se apodera dos espanhóis e que passam a fio de espada, na minha presença e sem causa alguma, mais de três mil pessoas, homens, mulheres e crianças, que estavam sentadas diante de nós. E vi ali tão grandes crueldades que nunca nenhum homem vivo poderá ter visto semelhantes. (…)

 

            Durante três meses e na minha presença morreram mais de seis mil crianças por lhes haverem tirado o pai e a mãe, a quem haviam mandado para as minas.


 

 

 

CAPÍTULO V

DA TERRA FIRME

 

            No ano de 1514 passou para a terra firme um Governador miserável, um tirano crudelíssimo que não tinha nem piedade nem prudência, e que parecia um instrumento do furor de Deus (…) e sobrepujava a todos os outros que o haviam antecedido e a todos os de todas as ilhas, por mais execráveis e abomináveis que tivessem sido suas ações. (…)

 

            Esse Governador e seu bando descobriram novas espécies de crueldades e tormentos para fazer com que o ouro lhes fosse descoberto e dado. Um de seus capitães, numa das expedições que fez, passou a fio de espada perto de 40 mil pessoas, queimando o atormentando de maneiras diversas, como me assegurou ter visto um religioso de São Francisco, chamado frei Francisco de São Romano, o qual estava em sua companhia. (…)

 

            Assim também o bispo, que foi o primeiro deste Reino, enviou para essas expedições seus servidores, a fim de participar do saque. Roubaram tanto ouro nesse tempo e nesse Reino que ultrapassa um milhão de ducados; e creio que digo muito pouco.

 

           


 

 

 

CAPITULO VI

DA PROVÍNCIA DE NICARÁGUA

 

            No ano de 1522 ou 23, esse tirano foi mais para diante a fim de subjugar a fértil província de Nicarágua, onde entrou em má hora. (…) Era coisa admirável ver quanto estava povoada: tinha vilas de três a quatro léguas de comprimento, cheias de frutos admiráveis que eram também a causa de que houvesse tanta gente. (…) Enviou para ali 50 homens a cavalo e fez matar à espada todo o povo dessa província (…).

            A maior das calamidades que despovoaram essa Província foi a licença dada por esse Governador aos espanhóis, de pedir escravos aos caciques e senhores. Todos os meses obtinham do Governador uma licença para  50 escravos que eram requisitados sob ameaça de que, se não dessem, fariam-nos queimar vivos ou ser devorados pelos cães. E como ordinariamente os índios não têm escravos e é muito quando um cacique tem dois, três ou quatro, eles se dirigiam a sua súditos e tomavam primeiramente os órfãos, em seguida, a quem tivesse dois filhos pediam um, e a quem tinha três tomavam dois; e assim que o cacique os fornecia nu número exigido pelo tirano, com grandes prantos e grito do povo; pois, ao que parece, os índios amam seus filhos com ternura. E pois que isso se fazia mui freqüentemente, desde o ano 23 até o ano 33, despovoaram todo esse é o ano 33, despovoaram todo esse Reino (…) a fim de vende-los como escravos no Panamá e no Peru, onde morreram todos (…)


 

 

CAPÍTULO VII

DA NOVA ESPANHA

 

            No ano de 1516 foi a Nova Espanha (*) descoberta e os que realizaram essa façanha cometeram grandes desordens e matanças no arraial dosa índios. (…) Desde o ano de 18 até hoje, 1542, a injustiça, a violência e as tiranias praticadas pelos espanhóis nas Índias ultrapassam as mais altas raias do absurdo, tendo esses mesmos espanhóis perdido inteiramente o temor de Deus e do Rei e o senso de responsabilidade, pois as barbaridades, as crueldades, as matanças, as ruínas, as destruições de vilas, em tantos reinos e tão grandes, foram tais e tão horríveis, que todas as cousas que até agora se referiram não são nada comparadas com as que foram feitas e perpetradas desde o ano 18 até o ano de 1542; e ainda hoje (…) estão sendo praticadas e cometidas as mais odiosas e abomináveis atrocidades; de modo que a regra que estabelecemos acima é verdadeira: isto é, que desde o começo foram de mal a pior e que excederam até a si próprios em desordens e atos diabólicos de toda natureza..

 

            (,,,) Durante esses 12 anos os espanhóis mataram e fizeram morrer em 400 léguas dessa região, tanto homens como mulheres, jovens e crianças, mais de quatro milhões de pessoas, a golpes de espada e de lança e pelo fogo (…).

 

 

(*) O atual México.


 

 

 

CAPÍTULO VIII

DA NOVA ESPANHA EM PARTICULAR

 

            O rei Montezuma lhes enviou à chegada grandes presentes, indo Senhores e várias outras pessoas em festa pelo caminho. E ao entrarem no domínio da cidade do México, por uma extensão de duas léguas, enviou-lhes seu próprio irmão, acompanhado de numerosos grão-senhores que levavam presentes de ouro, de dinheiro e vestimentas; e à entrada da cidade p Rei, em pessoa, com toda a sua corte, foi recebê-los, conduzido numa liteira de ouro; acompanhou-os até o palácio que lhes havia feito preparar. E nesse mesmo dia, como me disseram alguns que presenciaram a cena, os espanhóis, usando de certa dissimulação, prenderam o grande rei Montezuma, que de nada suspeitava, destacaram 80 homens para guardá-lo e, em seguida, puseram-lhes ferros nos pés.

 

            (…) Tendo ido o capitão de todos os espanhóis (*) a um porto marítimo a fim de prender outro capitão espanhol que vinha em guerra contra ele, e tendo deixado em seu lugar um capitão com cem homens para guardar o rei Montezuma, tiveram estes últimos a idéia de fazer uma cousa bastante notável, para aumentar nessas paragens o medo que se tinha deles. Sucedeu, pois, que os índios, os Senhores e o povo que não pensavam em outra cousa senão em agradar e distrair o Rei prisioneiro, puseram a dançar duas mil pessoas jovens, filhos dos Senhores w flor da nobreza de todo o Estado de Montezuma, levando nessas danças todas as suas riquezas e jóias em sinal de alegria; entretanto foram todos passados a fio de espada porque o capitão havia ordenado que em certa hora, quando os índios menos pudessem imaginar, os espanhóis caíssem sobre essa nobreza, de maneira que não deixaram um só com vida. Outros fizeram o mesmo em outros lugares, de maneira que lançaram sobre esses Reinos tal desolação que enquanto o mundo for mundo, eles se lembrarão de cantar e lamentar em seus areytos e bailes, como em forma de rima, todas essas calamidades e a perda da sua Nobreza.

            Vendo os índios tão enorme e inaudita crueldade, perpetrada sem causa alguma sobre tantos inocentes, e tendo até sofrido com paciência o aprisionamento não menos injusto de seu Senhor Soberano, que lhes havia ordenado que não fizessem guerra aos espanhóis, toda a cidade se levantou em armas e, pois que os espanhóis estavam enfraquecidos e muitos deles feridos, com grande trabalho puderam escapar. (…) Mas depois, havendo-se os espanhóis reunido, deram combate na vila e ali fizeram um horrenda e espantosa carnificina de índios, matando uma infinidade de povo e queimando vivos grande número de grão-senhores.

 

            (…) Digo, em verdade que o que esses (**) dois fizeram de mal, principalmente o que foi para o reino de Guatemala (pois o outro morreu logo e de morte má) daria para escrever um grande livro cheio de tantas chacinas, de tantas devastações, de tantos ultrajes e de tantas injustiças brutais que poderiam espantar o século presente e o século futuro. Certo, este último ultrapassou a todos os outros presentes e passados, tanto pela quantidade e pelo número de abominações que perpetrou, quanto pelos povos e países que desolou e tornou desertos. Cousas essas em número infinito (…) de modo que, desde o ano de 1524, até o dia de hoje, transformaram em desertos inabitáveis todas essas ilhas e Reinos que outrora haviam parecido um paraíso terrestre.

 

 

(*) Las Casas refere-se ao episódio em que Panfilo de Narváez foi enviado ao México para combater Cortez. Cortez enfrentou-o e venceu-o no litoral, onde hoje se localiza Vera Cruz. Uem Cortez deixou em seu lugar foi o capitão Pedro de Alvarado.

(**) Pedro de Alvarado e Francisco de Montejo.

 


 

 

 

CAPITULO IX

DA PROVÍNCIA E REINO DE GUATEMALA

 

            (…) o capitão mandou chamar o principal senhor e vários outros e tendo eles vindo como cordeiros, prendeu-os a todos e ordenou-lhes que dessem certas somas em ouro. Havendo eles respondido que não tinham esse ouro. Porque o país não o produzia, ordenou incontinente que fossem queimados vivos, sem que tivessem cometido qualquer outro crime e sem nenhuma outra forma de processo ou sentença. (…)

 

            Os índios, vendo então que com sua humildade, com seus presentes e sua paciência não podiam aplacar nem enternecer esses corações desumanos e enraivecidos e que sem nenhum motivo e nenhuma razão eram feitos em pedaços e que portanto tinham todos que morrer, lembraram-se de fazer uma união e juntar-se todos para morrer todos em guerra e vingar-se da melhor maneira possível de tantos, tão cruéis e tão diabólicos inimigos. E sabendo muito bem que estavam não somente desarmados, mas também nus, fracos e a pé, de tal modo que não poderiam nunca prevalecer nem vencer senão que por fim seriam todos destruídos, lembraram-se de fazer certas fossas no meio dos caminhos, a fim de que os cavalos caíssem nelas e rasgassem o ventre em estacas agudas e pontiagudas ali postas de propósito e tudo tão bem coberto de relva que nada parecia existir. Ali caíram os cavalos uma vez ou duas, porque depois os espanhóis souberam proteger-se. E para vingar-se fizeram uma lei segundo a qual tantos índios quanto pudessem apanhar vivos, qualquer que fosse sua idade ou sexo, seriam lançados a essas mesmas fossas. E nelas lançaram também mulheres grávidas e parturientes e velhos, tantos quantos puderam apanhar, até que as fossas ficaram cheias. Era coisa de inspirar compaixão ver essas mulheres com seus filhos atravessados por essas hastes. E aos outros todos mataram-nos a golpes de lança e a fio de espada. Também os atiravam a cães furiosos que os dilaceravam e os devoravam. Queimaram um senhor numa enorme fogueira de chamas vivas, dizendo que com isso queriam prestar-lhe uma homenagem. Persistiram nessas carnificinas tão desumanas durante uns sete anos, desde o ano 24 até o ano 31. Que se julgue, pois, qual é o número de pessoas que terão assassinado. (…)

 

            De modo que estando mortos todos os senhores e todos os que podiam fazer a guerra, os que restavam foram postos em diabólica servidão, tendo sido feitos escravos tributários e dando filhas e filhos, pois de outro modo não podem fornecer escravos. E desse modo os espanhóis, enviando navios ao Peru, carregados e escravos para vendê-los e por meio de massacres, destruíram e tornaram deserto um Reino de cem léguas quadradas ou talvez mais, país que era o mais feliz e povoado que pudesse existir no mundo. E esse tirano mesmo disse a verdade quando escreveu que era mais povoado que o reino do México. Em 15 ou 16 anos, desde o ano 24 até o ano 40, ele, com seus companheiros e confrades, fez morrer mais de quatro ou cinco milhões de índios; e ainda nesta hora estão matando e destruindo tudo quanto resta.,

 

            (…) Por certo, se eu tivesse que narrar as particularidades de todas essas atrocidades, faria um grande livro, que espantaria todo mundo.

 

 


 

 

 

CAPÍTULO X

DA NOVA ESPANHA, PANUCO E JALISCO.

 

            Após as grandes cueldades narradas, e outras que omiti (…) acabou-se por tornar deserta toda esta Província. E aconteceu que por um só jumento se dessem 800 índios (…) se serviram para cometer tantas crueldades, tantos pecados, tantas atrocidades, tantos latrocínios e tantas abominações que, narrados, pereceriam a todos impossíveis. (…)

 

            (…) o tirano apoderou-se incontinente do rei porque corriam vozes de que era muito rico em ouro e prata; e a fim de que lhe desse grandes tesouros começou a atormentá-lo, prendendo-o num cepo pelos pés, o corpo estendido, as mãos ligadas a um tronco; colocou-lhe então um braseiro nos pés e um rapaz ia molhando um regador no azeite e azeitando pouco a pouco o rei a fim de que a carne ficasse bem assada; havia de um lado um homem com um arco teso que lhe visava diretamente o coração e, de outro lado, outro homem segurava um cão, com o ar de fazê-lo correr sobre o índios e que em menos de um Credo teria podido fazê-lo em pedaços; e assim fez o capitão torturá-lo a fim de que descobrisse os tesouros que desejava; isto se prolongou até que um religioso de São Francisco se opusesse á tortura sem ter podido entretanto evitar que o índios morresse nesses tormentos. Pelo mesmo processo mataram a muitos senhores e caciques dessa província a fim de que dessem ouro e prata.

 

            (…) Esse grande tirano e capitão, passando para além de Mechuacam, foi à província de Jalisco, que estava inteiramente povoada e era muito feliz; pois era uma das mais férteis e admiráveis regiões das Índias e muitos dos seus burgos continham quase sete léguas.

 

            (…) Havendo um mau cristão se apoderado de uma jovem pela violência, a fim de abusar dela, a mãe da rapariga se lhe opôs; e, como quisesse arrancar-lha, o espanhol sacou da espada, cortou-lhe a mão e matou a moça a golpes de punhal, porque não queria ceder a seus apetites. (…)

 

            (…) Seu lugar-tenente assassinou a muitos índios, enforcando-os e queimando-os vivos, lançando outros aos cães, cortando-lhes as mãos, a cabeça, a língua, estando eles em paz.

 

            (…) E embora esses malvados não saibam praticar senão o mal, não cessam de dizer que sua guerra é justa contra esses pobres inocentes; dizem também que é Deus quem lhos dá, porque suas guerras iníquas são feitas pelo direito; e assim se regozijam, se glorificam e rendem graças a Deus pelas suas tiranias (…)

 


 

 

 

CAPÍTULO XI

DO REINO DE IUCATÃ

 

            No ano de 1526 foi constituído outro malvado Governador no reino de Iucatã, em virtude de mentiras e falsos relatórios que tinha feito ao Rei, como fizeram os outros tiranos até a hora presente, a fim de que lhes dessem ofícios e cargos, por cujo meio possam roubar. Esse reino de Iucatã era muito povoado, abundante em víveres e em frutos mais do que o México; e principalmente era abundante em mel e em cera mais que qualquer região das Índias (…)

 

            Os habitantes desse país eram os  mais notáveis de todas as Índias, tanto em organização social como em virtude, como na decência de sua vida, sendo eles verdadeiramente dignos de ser levados ao conhecimento de Deus; entre eles poderiam ter-se construído grandes cidades de espanhóis, que ali teriam podido viver como num paraíso terrestre, se disso não tivessem sidi indignos em virtude de sua grande avareza e enormes pecados; como também se tornaram indignos de várias outras possibilidades que Deus lhes havia mostrado nessas Índias. Esse tirano começou com 300 homens a mover guerra a esses bons e pobres inocentes que estavam em suas casas sem fazer mal a ninguém; e ali matou e arruinou um número infinito de índios(…) escravizou geralmente todos aqueles que não matou e carregou os navios que para ali tinham acorrido ao rumor de que havia escravos, enchendo-os de gente vendida, em troco de vinho, de azeite, de vinagre, de carne de porco salgada, de roupas, de cavalos, e de tudo quanto cada qual tinha necessidade.

 

            (…) Ele continuou essas más ações, desde o ano 26 até o ano 33, que são sete anos

 


 

 

 

CAPÍTULO XII

DA PROVÍNCIA DE SANTA MARTA

 

            E pois que o país, como se disse, era muito rico, ali se sucederam diversos capitães, cada qual mais cruel que o outro; de modo que pareciam porfiar em perpetrar crueldades cada vez maiores que as que o antecessor não tinha ainda praticado. No ano de 1529 foi para ali um tirano bem deliberado, com muita gente, sem temor algum de Deus, sem compreensão alguma do gênero humano e praticou devastações e matanças tão grandes que ultrapassou a todos quantos ali haviam estado antes dele, roubando grandes tesouros pelo espaço de seis ou sete anos que viveu; depois, tendo ele morrido sem confissão, e tendo fugido do lugar de sua residência, outros tiranos lhe sucederam, tão assassinos e ladrões quanto ele, os quais deram cabo do resto de gente que os tiranos precedentes não haviam podido extirpar.

 

Direi somente algumas palavras do que escreveu o bispo dessa província ao Rei nosso senhor: é a carta datada a 20 de maio de 1541. “Eu digo, Sacra Majestade, que o remédio para esta região é que Sua Majestade a ponha fora do poder dos padrastos e lhe dê um verdadeiro marido, que a trate como é justo e como merece, e isso o mais breve possível, pois doutro modo estou certo de que, com os tiranos que têm o governo e que a atormentam e a devastam, ela se acabará bem cedo.” (…) “Sua Majestade saberá também que nestes países não há cristãos; o que existe são diabos e não servidores de Deus e do Rei; o que existe são traidores à Lei e traidores ao Rei. E na verdade o maior empecilho que encontro em reduzir os índios que estão em guerra e pacificá-los e conduzir os que estão em paz ao conhecimento de nossa Fé, é o tratamento desumano e cruel que aqueles que estão em paz recebem dos espanhóis e disso estão de tal modo desgostosos e ultrajados que a nada têm mais ódio e mais horror do que o nome de Cristãos, os quais em todos esses países são chamados Yares, que quer dizer Diabos. E em toda a extensão da palavra, eles têm razão. Pois os atos que praticam aqui não são nem de Cristãos, nem de homens que usem a razão e sim de diabos (…)

            (…) “Os índios que estão em guerra, vendo o tratamento que se dá aos índios que estão em paz, preferem morrer duma só vez a suportar várias mortes sob o jugo dos espanhóis.”

 


 

 

 

CAPÍTULO XIII

DA PROVÍNCIA DE CARTAGENA

 

            Essas províncias, desde o ano de 1498 ou 99 até a hora presente, foram maltratadas e devastadas como as de Santa Marta: ali os espanhgóis praticaram saques, pilhagens e crueldades enormes que, a fim de acabar mais cedo este breve sumário, não quero particularizar, para ter mais vagar e contar as crueldades que se perpetram em outras províncias.

 


 

 

 

CAPÍTULO XIV

DA COSTA DAS PÉROLAS E DE PÁRIA E DA ILHA DA TRINDADE

 

            Desde a costa de Paria até o golfo de Venezuela excluído, que são umas 200 léguas, os espanhóis fizeram grandes e estranhas devastações, assaltando os habitantes e tomando-os vivos no maior número possível a fim de os vender como escravos, e cativando-os à vezes com prometer-lhes segurança e amizade e rompendo depois a palavra dada; nada obstante o bom acolhimento que haviam recebido dessa boa gente, havendo sido agasalhados e tratados em suas próprias casas como pais e como filhos e usufruindo de tudo quanto os índios tinham e podiam …

 

            Na ilha da Trindade, que é muito maior e mais fértil q  ue a Sicília, e que se junta à terra firme do lado de Paria, e onde os habitantes são os melhores e mais virtuosos de todas as Índias, entrou no ano de 1510 um bandido acompanhado de outros 60m ou 70 bandidos e ordenaram aos índios, por publicações e advertências públicas, que fossem morar e viver com eles nessa ilha. Os índios os receberam como a suas próprias entranhas e filhos e tanto os senhores como os súditos os serviam com grande alegria, trazendo-lhes de comer dia por dia, o que daria para sustentar o duplo dos espanhóis, em grande abundância, tudo de que têm e de que se tem mais necessidade.

            Os espanhóis construíram uma grande casa de madeira a fim de que os índios ali morassem todos juntos (…) em seguida foram com sua presa, que podiam ser uns 180 ou 200 homens que tinham feito amarrar, e chegando à ilha de São João venderam a metade como escravos e na ilha Espanhola a outra metade. (…) E o próprio capitão me disse que nem seu próprio pai, nem sua própria mãe lhe haviam dado o tratamento que lhe dispensaram esses índios da ilha da Trindade (…)

            De toda essa costa, que era muito povoada, tiraram mais de dois milhões de almas por meio de rapto, para as ilhas Espanhola e de São João e em seguida matam-nas todas como jogar os índios às minas e outros trabalhos, além de grande número que já ali havia, (…) É cousa verificada que nunca levam navios carregados de índios raptados por meio de banditismos, sem atirar ao mar a terça parte, isso sem contar os que são mortos quando querem agarra-los em sua própria casa. A causa disto é que querem de todo modo chegar ao fim que têm em mira e para apanhá-los precisam de muita gente, segundo a quantidade de escravos; e não levam senão pequenas quantidades de carne e pouca água a fim de que os tiranos que se chamam equipadores de navios não gastem muito. E assim não as há senão apenas para os espanhóis que vão com os navios para saquear, não havendo nem carne nem água para os pobres índios, por isso morrem eles de fome e de sede e não há outro remédio senão atira-los ao mar. E verdadeiramente um desses homens me disse que, desde as ilhas Lucaias, onde se fizeram grandes matanças desse gênero, até a ilha Espanhola, que são 60 ou 70 léguas, um navio pôde navegar sem compasso e sem carta marítima, guiando-se unicamente pelo rastro de índios mortos que flutuavam sobre o mar, a que haviam sido lançados. (…)

            A tirania que os espanhóis exercem contra os índios Lucaios, obrigando-os a extrair e pescar pérolas, é uma das mais cruéis que existem no mundo. Não há neste mundo vida mais desesperada que se lhe possa comparar, embora a de tirar ouro seja em seu gênero muito dura (…) e assim,  morrem comumente expelindo sangue pela boca, em virtude de compressão do peito, pelo fato de estarem tanto tempo e tão continuamente sem respirar dentro d’água


 

CAPÍTULO XV

DO RIACHO YUYA-PARI

 

            Corre pela província de Paria um riacho que tem o nome de Yuya-Pari, mais de 200 léguas de terra adentro. Muitas léguas subiu pelo riacho acima um malvado tirano em 1529; ia ele com 400 homens e por ali fez grandes matanças, queimando todos vivos e passando a fio de espada uma infinidade de gente que estava em seu país e em sua casa sem fazer mal a ninguém e por isso mesmo não tinha medo nem suspeitava de nada. Por fim esse tirano morreu de morte má e seu exército se desfez. Depois dele, outros tiranos se sucederam perpetrando as mesmas atrocidades e tiranias (…)

 


 

 

CAPÍTULO XVI

DO REINO DA VENEZUELA

 

            No ano de 1526 o Rei nosso Senhor, induzido por enganos e persuasões nocivas, visto que os espanhóis tiveram sempre o cuidado de lhe ocultar os prejuízos e danos que Deus, as almas e o seu Estado recebem nessas Índias, entregou um grande reino chamado Venezuela (que é maior que toda a Espanha) com o governo e a total jurisdição a comerciantes alemães (*).

            (…) Estes, havendo entrado no país com 400 homens ou mais, ali encontraram um povo bastante agradável, bondoso e dócil como cordeiros; eram como são em todas as outras partes das Índias antes que os espanhóis lhes façam mal. Para ali foram como tiranos incomparavelmente mais cruéis que todos os outros de que falamos;comportaram-se como feras mais desumanas que lobos e leões devoradores, pois ali tinham a jurisdição de todo o país, possuindo-o mais livremente, com cuidado maior e uma cegueira de avareza mais enraivecida; serviam-se de todas as práticas e indústrias de ter e roubar ouro e prata, mais que todos aqueles dos quais falamos; afastados de todo temor de Deus e do Rei, esqueceram também que eram homens.

            (…) Assassinaram a muitas nações, tendo chegado mesmo a fazer desaparecer os idiomas por não haver ficado que os falasse.

            (…) Mataram e mandaram para o inferno, por crueldade de diversos feitios, mais de quatro ou cinco milhões de almas (…)

 

            Certa ocasião (…) o capitão alemão tirano fez por uma grande casa de palha um grande número de gente e fez cortar todos em pedaços. E como havia no alto da casa algumas traves para onde vários subiram fugindo àquelas mãos sangrentas e à espada daquela gente, esse homem desumano (ó feras sem entranhas!) mandou por fogo a casa e todos os que ali estavam foram queimados vivos.

 

            (…) Esse tirano teve a idéia de entrar pelo interior do país a fim de descobrir por essa direção o inferno do Peru. Em virtude dessa infeliz viagem ele e os outros trouxeram um número infinito de índios, os quais estavam acorrentados e vinham por isso arrastando um peso de três ou quatro quintais. Se alguém estava fraco ou desfalecendo de fome ou morrendo de trabalho decepavam-lhe incontinente a cabeça contra o colar das cadeias a fim de que não fosse preciso desacorrentar ou outros que iam dentro dos colares e desse modo caía a cabeça de um lado e o corpo do outro; e a carga daquele que havia desfalecido era dividida e lançada sobre os que restavam.

 

            (…) Todas essas cousas foram provadas, com muitos testemunhos, pelo fiscal do Conselho das Índias (…) e se nunca se queimaram vivos alguns desses tiranos, isto nada prova em contrário do que fizeram em ruínas e males porque todos os ministros da Justiça que até esta hora têm estado nas Índias, em virtude de sua condenável cegueira, nunca se deram ao trabalho de examinar os delitos, perdas e matanças que perpetraram (…)


 

 

CAPÍTULO XVIII

DO RIACHO DE LA PLATA

 

            Desde o ano de 1522 ou 23, alguns capitães fizeram várias viagens ao riacho da Prata, onde há grandes reinos, províncias e gente de boa disposição. Mui capaz  de razão. Sabemos em geral que ali fizeram muitas matanças e destruições (…) estando muito afastados da Espanha, ali viveram mais desordenadamente e sem que houvesse justiça, embora justiça nunca tenha havido em parte alguma das Índias (…)

 


 

 

 

CAPÍTULO XIX

DOS GRANDES REINOS DO PERU

 

            No ano de 1531 foi outro grã-tirano com alguns dos seus aos reinos do Peru onde, entrando com o mesmo título e intenção de todos os outros, ia devastando povoados e vilas, matando os habitantes e causando tantos males nesse país, que asseguro não haver homem algum que possa narrá-los e apresentá-los como o deveriam ser aos olhos do leitor

 

            (…) o Rei Universal e Imperador desses reinos, chamado Ataualpa, veio acompanhado de muita gente nua que trazia suas armas ridículas, não sabendo absolutamente como as espadas cortavam, como as lanças fendiam, como os cavalos corriam nem que esses espanhóis eram uma espécie de gente tal que, se os diabos tivessem prata, tratariam de descobrir o meio de rouba-los. O Rei veio ao local em que estavam os espanhóis, dizendo: Onde estão esses espanhóis. Que venham para aqui, não me moverei daqui enquanto não me derem satisfação pelos meus súditos que mataram, pelas minhas aldeias que despovoaram e pelas minhas riquezas que roubaram.

            Os espanhóis foram contra ele matando-lhe uma infinidade de gente. Apoderaram-se também de sua pessoa que vinha trazido por uma liteira de mão. Tratam com ele para que se resgate. O Rei promete dar quatro milhões de castelhanos e os espanhóis prometem solta-lo. Mas, por fim, não mantendo (como nunca mantiveram), nem a fé jurada nem a verdade, amarraram-no, ordenando-lhe que por seu comando se reúna sua gente.

            (…) condenaram-no a ser queimado vivo (…) o capitão resolveu que fosse estrangulado; e havendo sido estrangulado, foi queimado.

 

            Quanto às crueldades notáveis cometidas contra essa gente por aqueles que se dizem cristãos, quero aqui referir algumas que um religioso de São Francisco viu no começo e certificou com seu nome e sua assinatura, documento que eu tenho uma cópia assinada (…)

            “Eu, Frei Marc de Nice, da Ordem de São Francisco, Comissário superior de outros irmãos da mesma Ordem nas províncias do Peru (…) sou testemunho de que, sem que esses índios tivessem dado motivo algum, os espanhóis, logo que entraram em seu país, e depois de haver o grande cacique Ataualpa dado aos espanhóis mais de dois milhões de ouro e haver-lhes submetido o país sem resistência, incontinente os espanhóis queimaram Ataualpa, que era senhor de todo o país. E depois dele queimaram seu capitão geral, Cochilimaca, o qual tinha vindo pacificamente ao Governador com outros grandes senhores. Pouco dias depois queimaram um grão-senhor, chamado Chamba, da Província de Quito, sem que ele tivesse culpa alguma e sem que para tanto lhes tivesse dado o menor motivo. Do mesmo modo queimaram injustamente a Schapera, senhor de Canarianos. Também queimaram os pés a Aluis, grão-senhor entre todos os de Quito (…) e segundo pude ouvir, a intenção dos espanhóis era que não ficasse um único senhor em todo o país.”

 

            “(…) afirmo ter visto com meus próprios olhos que os espanhóis cortaram as mãos, o nariz e as orelhas a índios e índias sem nenhuma causa ou propósito, senão porque isso estava no capricho de sua fantasia e assim procederam em tantos lugares e em tantas regiões que seria muito prolixo recitá-los.

 

            (…)

            Há á alguns dias passados lançaram com dardos de cana e fizeram morrer uma poderosa rainha, mulher de Elingue, que ainda é rei desse Reino (…) e mataram-na contra toda justiça e razão, grávida que estava e, como diziam, somente para causar aborrecimentos a seu marido.

 


CAPÍTULO XX

DO NOVO REINO DE GRANADA

 

            No ano de 1539 houve diversos tiranos concorrentes, vindos da Venezuela, de Santa Marta e de Cartagena em busca do Peru para tentar entrar nesse país. Encontraram para além de Santa Marta e Cartagena, a 300 léguas de terra adentro, terras férteis e províncias admiráveis, cheias de um número infinito de habitantes, muito amáveis como os outros e muito ricos, tanto em ouro como em pedras preciosas, dessas a que dão o nome de esmeraldas. Províncias a que deram o nome de Novo Reino de Granada (*)

 

            (…) E como havia vários homens iníquos e cruéis, dos que faziam banditismo nessas regiões, eram carniceiros notáveis, que tinham como profissão derramar o sangue humano, tendo além disso a prática e a experiência das façanhas retro mencionadas em várias regiões das Índias, suas obras diabólicas foram tais e tão numerosas e praticadas em circunstâncias tão odiosas e horríveis que excederam de muito às ouras, isto é, todas as obras que foram praticadas pelos outros e por eles mesmos em outras províncias.

 

            (…)

O capitão tirano-mor que dirigia esse país prendeu o senhor e rei de toda a região e o manteve prisioneiro seis ou sete meses, exigindo-lhe ouro e esmeraldas sem causa nem motivo algum; esse rei que se chamava Bogotá, pelo temos que lhe haviam incutido, disse que lhes daria uma casa de ouro, esperando escapar às garras daquele que o afligia e enviou índios para que lhe trouxessem ouro; e trouxeram-lhe grande quantidade de ouro e pedras preciosas; mas como rei não dava a casa de ouro, os espanhóis diziam que o matariam porque não cumpria o que havia prometido. (…) Deram-lhe o tormento e o suplício do mastro de cordas (**), puseram-lhe gordura fervendo no ventre; puseram-lhe ferros aos pés, que estavam amarrados a uma estaca enquanto que, com o colo ligado a outra estaca, suas mãos eram seguradas por dois homens enquanto lhe punham fogo nos pés. (…)  enquanto durava essa tortura Deus mostrou sua desaprovação por essas crueldades fazendo incendiar-se toda a vila em que era praticada.

           

            (…) e assim queimaram e mataram a todos os senhores desse país.

 

            (…) No espaço de dois ou três anos, desde que esse reino foi descoberto, trucidaram e mataram um país que era dos mais povoados do mundo.

 

            Os espanhóis que estão nas Índias possuem cães muito selvagens, instruídos e ensinados a matar e despedaçar os índios (…) Para nutrir esses cães, por toda parte aonde vão, levam consigo muitos índios acorrentados, como se fossem porcos e matam-nos para nutri os cães, arrastando consigo um açougue de carne humana. E um diz ao outro: empresta-me um quarto de índio para dar de comer a meus cães, até que eu também mate algum (…)

 


            Declaro pois que todas as cousas que referi, tal como pude explica-las o mais perto possível da verdade, não são nem a milésima parte do que foi feito e do que se faz ainda hoje, seja quanto à qualidade, seja quanto á quantidade..

            (…)

            E a fim de que todos os cristãos tenham maior compaixão desses pobres inocentes e de que lamentem mais sua perdição e danação e para que detestem a avareza, a ambição e a crueldade dos espanhóis, que todos tenham como cousa absolutamente verídica, além de tudo o que acima referi, que até o dia de hoje nunca os índios fizeram mal algum aos espanhóis onde quer que seja, até que tenham sido os primeiros a receber injúrias e ultrajes, sendo roubados e traídos; ao contrário, consideravam os espanhóis uns seres imortais, pensando que tivessem descido do céu e como tais os recebiam até que se dessem abertamente a conhecer o que eram e o que pretendiam.

            (…)

            Quando os bons juízes chegaram para executar as leis, resolveram (como homens que haviam perdido todo o amor e todo o temor de Deus) perder também toda a vergonha e a obediência que devem ao Rei; e assim tomaram o título de traidores, portando-se como tiranos crudelíssimos e além de todo limite (…)  Todos, pequenos e grandes, vão praticando banditismo e roubando, uns mais, outros menos, uns publicamente e abertamente e outros secretamente; e sob pretexto e aparência de servir o Rei, desonram a Deus e roubam a Sua Majestade.

           

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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